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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

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"O topo e a falácia"

22.03.21

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"O topo e a faláciaPelo Público em 22 de Março de 2021; como acordado, publiquei-o no blogue e acrescentei-o aqui.

Título: O topo e a Falácia.

Lide (lead): Em cada mil alunos do secundário, contam-se pelos dedos de uma mão os que sonham com o ensino. E a ideia de um professor leccionar várias disciplinas não se faz à pressa.

Texto:

Como ponto prévio, e quando se discute a relação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) com as carreiras da Administração Pública (AP), recorde-se a insistente mediatização da última década e meia: não pode ser, os professores chegam todos ao topo. Pois bem: há 115 índices remuneratórios na AP (site da Direcção-Geral da Administração e Emprego Público) e o topo dos professores continua no 57º lugar. Há, obviamente, 58 índices acima do topo dos professores. O topo da tabela recebe quase o dobro do 57º lugar e, já agora, mais 120% do que a média. 

O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 1 de Março, uma recomendação sobre o PRR com vista a "um programa de investimentos que responda aos impactos da pandemia". Esperou-se uma referência à actualidade escolar: rastreios, testagens fiáveis, vacinas e condições laborais dos professores e de outros profissionais. E sendo Portugal um país de turmas numerosas, admitiu-se um olhar para a OCDE: "o número de alunos por turma é o parâmetro crítico no ensino presencial; a distância social provou ser a medida mais eficaz na prevenção do contágio da covid-19". Mas não foi assim. O CNE centrou-se na imparável falta de professores. Concorda-se. Escolheu um factor estruturante com números elucidativos: a maioria dos professores tem mais de 50 anos e reformar-se-á até 2030; só 0,6% tem menos de 30 anos; numa carreira com 10 escalões, os do 1º têm, em média, mais de 43 anos de idade e 14 de serviço e os 8,7% do topo têm, em média, 60 de idade e 38 de serviço.

Será difícil substituir professores no curto e médio prazos porque vários cursos de formação inicial estão há anos "sem alunos". Em cada mil alunos do secundário, contam-se pelos dedos de uma mão os que sonham com o ensino. E a ideia de um professor leccionar várias disciplinas não se faz à pressa. Leia-se um jovem professor, João André Costa do blogue "Dar aulas em Inglaterra", que emigrou para Inglaterra onde o desnorte começou há mais tempo: "um professor com canudo lecciona qualquer disciplina, mas isso reduz a exigência e deteriora a qualidade de ensino. Para ensinar uma infinidade de conteúdos tem que se "simplificar" o ensino. Portugal também vai por aí? E regressar por 1200 euros por mês? A 500 quilómetros de casa?". Por outro lado, a pandemia acelerou o descrédito da "imaginada" atenuação da falta de professores: escolas a tempo inteiro para se visualizar escolas virtuais com "guardadores" contratados no "modelo-Uber".

Mas a grave falta de professores tem outras causas. Desde logo, as consequências da devassa mediática da profissão (tantas vezes estimulada por governantes): ser professor perdeu atractividade; a carreira está no lugar cimeiro dos travões (cotas e vagas) à progressão na AP; a farsa avaliativa, burocrática e kafkiana, e o modelo extractivo de gestão das escolas fomentam a parcialidade; o que existe, é um recuo de décadas na consolidação democrática. 

Acima de tudo, é "impossível" avaliar professores em escalas métricas. Tenta-se muito, e há muito, e falha-se sempre porque ensinar é complexo, diverso e com elevada subjectividade. Como a pandemia acentuou, a função primeira da escola é a aprendizagem com um ensino analógico numa simbiose da cognição com as emoções. Conhecem-se muitas maneiras de ensinar, mas sabe-se pouco sobre o modo como cada um processa a aprendizagem. As palavras-chave neste domínio são humildade e ignorância. Por isso, é avisado não hierarquizar métodos de ensino. Esse atrevimento selectivo tem provocado erros irreparáveis.

E antecipando o debate, aconselha-se aos ultraliberais a leitura de "O reinado do erro: A farsa do movimento de desestatização e o perigo para as escolas públicas da América" de Diane Ravitch, e, aos mais mainstream que defendem o que existe, o sistema de avaliação de professores patrocinado pela Fundação Gates e pelo "Obama Race to the Top". Em ambos, a grave falta de professores foi o resultado. Errou-se em toda a linha ao avaliar professores (remunerando eficazes e despedindo ineficazes) através de testes padronizados aos alunos. Prejudicou-se os alunos, empurrou-se os professores mais entusiasmados para fora da profissão e desencorajou-se a candidatura dos jovens com melhores resultados escolares. 

Há quem faça muito diferente e existem outros que se aproximam. O que não existe é outro modelo como o vigente em Portugal. Olhemos para o tal exemplo progressista finlandês. É um país com um século de independência. "Mandatou" os professores para a construção da identidade nacional. Desconhecem a lógica desastrosa do "cliente tem sempre razão" aplicada à escola. Confiam nos professores. Não há avaliação do desempenho. A carreira tem dos mais elevados índices remuneratórios do sector público. A formação inicial é prestigiada. Não existe inspecção. Há estabilidade nas políticas educativas. A opinião dos professores conta. As escolas têm uma dimensão civilizada e desburocratizada.

E para terminar, recupere-se a análise ao coro mediático dos "professores não podem chegar todos ao topo". Não raramente, argumenta-se com as hierarquias militares. De forma sucinta, diga-se que um general não realiza as tarefas de um alferes e vice-versa, mas que um professor do 1º escalão lecciona a mesma turma que um do 10º. O cerne da profissionalidade dos professores é a sala de aula. As progressões oxigenam uma carreira horizontal. O conceito de topo é de outra natureza: a experiência, o conhecimento e a prudência são os atributos essenciais. De resto, há uma discussão a recuperar, e é até preocupante que assim seja, sobre direitos e deveres quando uma sociedade não se questiona sobre perdas que exigiram lutas determinantes. Desde logo, civilizar horários laborais para que as famílias tenham tempo para as crianças e explicar que os cortes (também no tempo de serviço) nos professores atrasaram milhares no acesso a um escalão máximo que é o 57º da DGAEP, que há cerca de 60 mil que nunca o atingirão e que os que começam ficar-se-ão pelo 35º lugar.

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