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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

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"O encerramento das escolas e os interesses inconfessáveis"

02.03.21

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"O encerramento das escolas e os interesses inconfessáveis"

Pelo Público em 2 de Março de 2021; como acordado, publiquei-o no blogue e acrescentei-o aqui.
Título:
O encerramento das escolas e os interesses inconfessáveis
Lide:
Resta-nos desejar que a Europa consiga acelerar o envio de vacinas, e, já agora, de mais fundos a fundo perdido, porque uma 4.ª vaga projectaria a crise para o domínio do insustentável.
Texto:

As vacinas certificam o avanço da ciência e abrem espaço ao optimismo. Mas enquanto não se consegue a tão desejada imunidade de grupo, é crucial que se aprenda. Não apenas para se evitar uma 4ª vaga, mas para se pensar num futuro mais inclusivo no pós-pandemia.

Desde logo, tem sido estranha a argumentação a propósito do encerramento das escolas. Convenço-me que há alguma explicação no isolamento físico imposto pelo vírus. As pessoas não estão bem. Só pode ser. É até oportuno recordar um "sociólogo da comunicação", o alemão Niklas Luhmann, que nos interrogou sobre os motivos que levariam um indivíduo a ser honesto no escuro. Nesta fase, nem teremos que equacionar uma flagrante desonestidade. É suficiente, por exemplo, imaginar um adulto em teletrabalho com crianças e jovens em casa. É provável que seleccione e manipule os argumentos favoráveis à sua condição, como terá tendência para o fazer um professor justificadamente temeroso. E foram exactamente essas inscrições que me transportaram para os interesses inconfessáveis a que voltarei no fim do texto.

Dito isto, sublinhe-se que para além das incertezas inerentes ao processo pandémico, há surpreendentes e persistentes incursões mediáticas. Repare-se: quando Angela Merkel diz que um educador de infância, ou um professor do 1º ciclo, deve ser vacinado antes dela porque não consegue manter uma distância de segurança, é porque está bem informada em relação aos riscos de se frequentar uma sala lotada de crianças que são em regra assintomáticas. E decerto que a chanceler não partilha da grave epifania a "escola é segura".

E a perplexidade aumenta porque um cidadão medianamente informado ouviu, desde Julho, Filipe Froes, da Ordem dos Médicos, defender que os assintomáticos são uma das maiores preocupações e que o país teria de aumentar a testagem nos lares e escolas - sectores mais expostos - para evitar uma segunda vaga e mais confinamentos. Também se sabe, desde 9 de Dezembro, que epidemiologistas australianos (terão um sistema semelhante ao do Reino Unido que, e de acordo com João Paulo Gomes do Instituto Ricardo Jorge, tem uma rede de detecção epidemiológica vinte vezes superior a qualquer país europeu) escreveram que a reabertura das escolas foi uma das decisões mais relevantes para a 2ª vaga pandémica na Europa e na América do Norte. Concluíram que as crianças não são menos susceptíveis, nem menos transmissíveis, nos contágios, permanecem assintomáticas e que, em estudos mais aprofundados, são frequentemente falsos negativos não detectados pelos testes de antigénio.

Mas, por cá, os números também foram elucidativos. O encerramento das escolas foi determinante nos confinamentos. E olhe-se mais em detalhes. Nos 15 dias decorridos entre 28 de Novembro e 12 de Dezembro, as escolas fecharam 8 por causa das pontes e isso reflectiu-se na redução de infectados. E a ciência dá-nos mais dados concludentes: a abertura das escolas em Setembro fez o risco de transmissibilidade (Rt) subir cerca de 20% a 25% logo nas primeiras semanas; grande parte da transmissão fez-se através de pessoas assintomáticas ou com poucos sintomas (que quanto mais jovem mais se está nesse estado), sendo esse “o grande perigo da doença”; as escolas serviram para transmitir o vírus de agregado familiar para agregado familiar; e se o Rt ficar acima de 1,2 é quase garantido que poderá haver uma quarta vaga.

E percebe-se o receio tal a inércia registada no que levamos de pandemia nas medidas simples e eficazes que reduziriam os 3 c's (distanciamento físico, espaços lotados e aglomerações de pessoas) dentro e fora das escolas: turmas mais pequenas ou por turnos semanais, horários desfasados, pequenas interrupções a cada 4 ou 5 semanas de aulas, desconcentração de intervalos e redução temporária da carga curricular. Esta última variável seria até crucial na passagem para o ensino remoto de emergência. E, para além de tudo, perde-se também uma preciosa oportunidade para se investir na redução das turmas numerosas que é um factor determinante nas nações que falham historicamente; como é o nosso caso.

E, para finalizar, há mais dois aspectos críticos relevantes.

No primeiro, nem o Papa Francisco se lembraria de o sugerir aos seus ministros. Já percebemos que em epidemiologia há estudos, avanços e incertezas; mas não é assunto dado a esoterismos ou aparições. Pelo que se vê nas nações historicamente inclusivas, o Rt é uma das medidas do estado da pandemia. Por cá, a ordem de grandeza é a Páscoa. Qual Rt. Desconfinar-se antes ou depois da Páscoa é o quebra-cabeças. Foi o Natal, desta vez é a Páscoa.

No segundo, recorde-se o saudoso Eduardo Prado Coelho: "uma ideologia é sempre um conjunto de interesses inconfessáveis". Qualquer que seja o significado ou a concepção que se tenha de ideologia (historicamente inquestionável no desenvolvimento humano), o leque existente não tem escapado ao desfile de interesses inconfessáveis para comprometer ou descomprometer quem governa ou quem se opõe. O país, as pessoas e a pandemia mereciam mais. Resta-nos desejar que a Europa consiga acelerar o envio de vacinas, e, já agora, de mais fundos a fundo perdido, porque uma 4ª vaga projectaria a crise para o domínio do insustentável.

6 comentários

  • Percebo. Mas vamos desejar que, no mínimo, se regresse ao tempo sanitário antes da pandemia no que se refere à circulação das pessoas.
  • Sem imagem de perfil

    mario

    07.03.21

    Assuma-se a realidade:
    - o virus da covid instalou-se na população e continuará a disseminar-se como todos os outros virus (gripe influenza, gripe A, etc.). Daqui a uns anos ainda vai haver pessoas contagiadas com sintomas graves, e continuará no tempo, tal como acontece com a gripe influenza.
    - ao longo do tempo, eventualmente todos serão contagiados pelo sars-cov2.
    - pode-se impedir um virus de disseminar e provocar doença, mas é impossivel erradicá-lo do planeta.
    - provavelmente, a vacina terá um efeito temporário semelhante à que é usada para a gripe influenza, o que significa vacinação anual. Essa probabilidade é elevada porque a biologia do virus promove o aparecimento de mutações com frequência, e a vacina não proteger contra elas. É por isto que durante décadas nunca conseguiram uma vacina com proteção prolongada para gripe influenza, e também será provável que não consigam para a gripe covid. O problema é que enquanto na gripe influenza só é necessário vacinar anualmente aproximadamente 20% da população, na gripe covid será no minimo 50% da população, o que coloca um problema logistico (produção, transporte, inoculação), com custos elevados para o Estado (mas lucros elevados para as farmacêuticas...)
    - a diferença entre a gripe influenza e a covid, é que a gripe influenza só afeta gravemente a faixa etária idosa (acima dos 70 anos), onde ocorre a mortalidade, enquanto a gripe chinesa já pode afetar gravemente faixas etárias mais jovens, a partir dos 40 anos.
    - cada pessoa deve se preparar para o dia em que será contagiada, esperando que, caso tenha sintomas graves, existam camas de internamento disponiveis.
    - a vida tem de continuar porque desde os primórdios da Humanidade que a espécie humana, além dos virus, está diariamente exposta a agentes biológicos que infestam o corpo: bactérias, fungos, insetos. Por isso é que existe o sistema imunitário para lidar com essas invasões, e quando falha, a intervenção médica (que também ainda não tem solução em várias situações). Assim, sob pena de a prazo a sociedade estar em ruína social, temos de viver normalmente aceitando que cada um pode estar sujeito a suscetibilidade biológica que põe em causa a sua saúde. Este foi o contexto assumido pelos países escandinavos, e visto como sendo uma decisão insensível, mas que somente resulta de uma análise objetiva e factual.
    Foi sempre assim desde o aparecimento do Homo sapiens e continuará a ser...
  • Sabemos tudo isso, mas esta pandemia pode tornar-se numa encruzilhada de dimensões inesperadas. A ideia que está a prevalecer é a de manter todos os cuidados até a vacinação atingir mas de 70% da população. Ou seja: chegados aí, espera-se uma imunidade que permita um qualquer regresso ao normal.
  • Sem imagem de perfil

    mario silva

    10.03.21

    Chegados aí, demorando mais uns meses(?) haverá o quê?...
    Será que a pandemia social permitirá o ''normal'?...
  • Boa questão. Mas acabar a pandemia já é um passo importante.
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