Eles não querem ser avaliados
Pelo Público em 1 de Dezembro de 2024. O texto tem 3 ligações, o que exige a leitura no Público ou no blogue. Como acordado, o texto está publicado no blogue.
Título: Eles não querem ser avaliados
Texto:
Eles não querem ser avaliados foi, nas bolhas política e mediática, a diminuição mais repetida sobre os professores e sumariza uma das causas da crise do capitalismo democrático. É da família da desistência das classes trabalhadoras no voto nos partidos de centro-direita e de centro-esquerda. Percebe-se melhor acrescentando uma adaptação de uma célebre síntese: é a humilhação, estúpido! Essa desistência é evidente nos EUA, alastra-se nas democracias ocidentais e faz temer pela sobrevivência dos regimes.
Aliás, não seria a primeira vez que a democracia se apagava e é surpreendente como há quem o ignore ou relativize. Em 2020 e como exemplo, só em 2% das democracias é que 75% dos cidadãos estavam satisfeitos com o regime (é ler Martin Wolf). Em paralelo com esse crepúsculo, aumenta o número de territórios subjugados por autocracias e acentua-se o risco de o poder cair, paulatinamente, em despotismos e delinquências.
Mas sistematize-se o debate. Descrevam-se os pontos de contacto entre a desistência das classes trabalhadoras e a "fuga" estrutural de profissionais das administrações públicas, escolhendo os professores.
Resumam-se pontos inquestionáveis deste milénio, mas iniciados, na década de 1980, com a desregulação do capitalismo democrático: ajustados à inflação, os salários actuais das classes médias e baixa são inferiores aos praticados há 30 anos (ou mesmo 50 anos em algumas democracias); a trágica crise das dívidas soberanas - uma complexa associação de variáveis - teve um pico na crise financeira global entre 2007 e 2012, e as políticas de austeridade, que humilharam as classes médias e baixa - acusando-as de viverem acima das possibilidades -, caíram moralmente quando os partidos de governo, e as suas elites financeiras, se desacreditaram na ligação a falências bancárias, a casos de corrupção e a organizações não escrutinadas que capturaram os orçamentos dos estados.
Mas a humilhação é mais profunda. Nas classes trabalhadoras, há um ressentimento inultrapassável com a "tirania do mérito" (é ler Michael J. Sandel) resultante da "impossibilidade" de ascensão social e material sem um diploma de ensino superior. Os humilhantes programas de meritocracia Kafkiana para as massas dividiram as classes médias e baixa. Estimularam lutas de ódio e inveja social, burocratizaram a actividade sindical e instituíram a sociedade dos zangados.
Como a escola pública é um valor precioso da consolidação da democracia, detalhe-se o estado dos professores portugueses (um caso de sucessivos atrasos e ineditismos) e, se necessário, raciocine-se por indução para os outros grandes grupos profissionais.
Eles não querem ser avaliados sintetiza a humilhação dos professores e a sua falta estrutural. Se ensinar é difícil, exigente e complexo - e avaliado ao minuto dentro da sala de aula -, torna-se num desgaste diário insuportável sem uma retaguarda forte e civilizada. Impor, e fazer gala disso, farsas administrativas a avaliar o desempenho - sem qualquer "olhos nos olhos" e com quotas, vagas e pontuações até às centésimas - e em ambientes de autocracia, indisciplina e inferno burocrático, alimentou a vexação e a não atractividade do exercício.
Quem testou estes modelos abandonou-os de imediato. Os nórdicos nunca o fizeram. Classificaram-nos como aberrações e, de resto, resistiram aos efeitos do capitalismo desregulado e selvagem porque tinham classes médias maioritárias, escolarizadas e consistentes. Mas sempre avaliaram a sanidade dos professores e, quando necessário, requalificaram com civilidade.
Portugal, como se disse, tem-nos inamovíveis há quase duas décadas. Para esse atraso fatal, usou, até 2022, um inédito estado de negação da falta de professores. Depois daí, sucederam-se desesperos. Apesar dos salários não concorrenciais (ao contrário da década de 1980) que inviabilizam o regresso de milhares que desistiram, a queda da massa salarial - por via das aposentações - permitiu a recuperação do tempo de serviço (que é sempre um processo administrativamente tortuoso e que está longe de corresponder às perdas irreparáveis desde 2007), o aumento das vinculações nos quadros das escolas (que era escandalosamente baixo) e das remunerações na entrada na carreira. E aplicou-se, a um grupo profissional exausto e envelhecido - e que, em demasiados casos, padece da síndrome de Estocolmo -, horas extraordinárias a eito e suplementos remuneratórios no adiamento da aposentação.
E mantém-se a engrenagem diabólica supervisionada pelo marketing partidário. Por exemplo, a pressa na mediatização não rigorosa do milagre da multiplicação dos professores transmitiu a ideia de que, não tarda, há outra vez "professores a mais" (como em 2012) e recuperou a fuga aos cursos de professores.
Por outro lado, contratar a eito guardadores "uberizados" para que haja um adulto em cada sala de aula, é o jogo que interessa às gigantes tecnológicas da tele-escola 2.0, às tecnocracias, às plutocracias e às autocracias. E é demasiado arriscado para o futuro da escola pública e da democracia. E não é apenas porque os ricos sempre lutarão para reprimir a representação democrática dos pobres. É porque, de facto e em suma, a recuperação da democracia na escola e a elevação dos professores ainda estão ao nosso alcance. Não só atenuarão o desvario nas contratações nos curto e médio prazos, como agirão noutra trágica frente de batalha que será o pior dos legados desta geração que governa: escolas de qualidade para ricos versus "armazéns" para os restantes.