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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

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É a humilhação, estúpido!

09.06.25, Paulo Prudêncio

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Pelo Público em 9 de Junho de 2025. O texto tem 4 ligações. A leitura na edição do Público é de acesso gratuito. Como acordado, o texto está publicado no blogue.

Título: É a humilhação, estúpido!

Texto:

- Irrita-me que os melhores lugares nas filas da frente estejam quase sempre vazios, porque estão reservados para vips que não pagam nem aparecem - dizia-me um amigo preocupado com o crepúsculo da democracia na sociedade dos zangados. Se bem me recordo, houve, pela década de 1990, um movimento para civilizar as bilheteiras. Mas perdeu-se essa decência, como se perdeu o espírito do "dia inicial inteiro e limpo". Os tempos são de tratamento vip para vips, usufruído na primeira oportunidade até pelos demagogos mais críticos e vocais.

De facto, os inúmeros avisos da decadência foram sugados pelo triângulo das vaidades, dos interesses instalados e dos chico-espertismos; e o mal está feito. Resta buscar o tempo perdido, na linha da magistral descrição de Marcel Proust sobre o declínio da sociedade francesa do final do século XIX e início do século XX. Com efeito, as elites exibiam-se, com aquela superioridade de quem habita a vida dos príncipes e dos seus salões e num ir e voltar entre os lados de Méséglise (da mundana burguesia) e de Guermantes (da decrépita aristocracia), convencidas da sua invisibilidade e de uma exclusiva imunidade às tragédias (vã, como se devia saber).

Agora, não adianta discutir se os eleitores têm razão. Até porque a história tem exemplos para todas as correntes, incluindo protestos que correram mal: desde eleitores que votaram em quem historicamente mais contribuiu para atrasos e pobreza, até aos que, fatigados com a imperfeição da democracia, pareceram possuídos pela síndrome de Estocolmo ou por uma obsessão pelo abismo. Atente-se é nas suas razões. Assuma-se que a memória cedeu demasiado terreno à desinformação (foi fatal a subvalorização do ensino das humanidades e das artes nos currículos escolares), e aja-se.

Acima de tudo, os extremismos alimentaram-se em classes médias espremidas e esquecidas - e com ricos cada vez mais ricos - e na crise da representatividade. Aliás, foi no século XIX e com receio da democracia directa exercida pelas massas, que se criou a representatividade e um sistema de classe - a dos políticos profissionais - que não é realmente democrático nem representativo. É uma oligarquia de especialistas no poder. É, em regra, desconsiderada como elite, mesmo que se exiba à sombra de sábios. Efectivamente, aumentou-se o desconhecimento entre representantes e representados e gerou-se oposições extremadas guiadas pelo ressentimento.

Por outro lado, o desencanto dos eleitores estrutura-se no humilhante aumento brutal das desigualdades educativas. E por mais que se ignore a educação nas campanhas eleitorais, o vexame emerge em três níveis:

1. Ressentimento causado pela "impossibilidade" meritocrática de promoção material e social sem uma certificação do ensino superior;

2. Jovens - certificados com curso superior e que ainda não emigraram - desanimados com as saídas profissionais não adequadas às expectativas, com baixos salários e sem acesso a habitação;

3. Jovens eleitores que cresceram sem informação histórica e humanista que filtrasse os algoritmos do ódio, da misoginia, da violência e das notícias falsas, e com encarregados de educação igualmente fascinados com o smartphone e incapazes de impor regras (o que o mercado gulosamente agradece).

A função nuclear da educação fragilizou-se, em simultâneo com a diminuição do papel emancipador da escola. Por este caminho, só os ricos a terão com qualidade. É que para além dos cortes curriculares, os professores foram alvo de uma humilhação social e profissional - com a cumplicidade da bolha político-mediática - patente na sua gravíssima falta estrutural. Durante duas décadas apontaram as causas burocráticas de tanta desconfiança e desautorização. Acima de tudo, foram vítimas da avaliação Kafkiana e de uma gestão autocrática das escolas que aboliu o voto directo e criou um universo de parcialidades familiar da crise de representatividade. E se a imagem do poder local melhorou, desde 2005, por via da limitação inequívoca de mandatos que aproximou eleitos de eleitores, as escolas continuaram expostas a caudilhos e dinossauros. 

Se não se trava este capítulo da história universal da humilhação, não adianta proclamar que a esperança vergará ventos ou marés. Esta tempestade perfeita ensombra o futuro e, de facto, é um conjunto vazio anunciar que o mundo mudou. Na verdade, um apagão da democracia não será inédito e é espantoso que se relativize ou se ignore. Mas o mais inaceitável, é saber-se que os que o sabem não mudam sequer o que ainda está nas suas mãos, porque adoecerem de ganância e de falta de empatia.

 

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