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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

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A qualidade do ensino público e o mundo digital

30.07.21

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"A qualidade do ensino público e o mundo digital"Pelo Público em 1 de Junho de 2021. Publiquei o texto no blogue e partilhei-o no facebook. Este texto é também uma síntese de textos recentes, dos quais incluí pequenas passagens adaptadas, publicados no blogue.

Título:

A qualidade do ensino público e o mundo digital

Lide (lead): 

Por este caminho, só teremos professores em escolas com propinas elevadas onde os conteúdos digitais serão concebidos internamente para evitar os massificados.

Texto:

Antes de mais, é notória a preocupação com a descida paulatina da qualidade do ensino público. E esta inquietação não tem uma resposta política efectiva. A conclusão baseia-se na manutenção dos seguintes domínios críticos da última década e meia: condições de realização do ensino, carreira e avaliação dos profissionais, gestão das escolas e forte tendência para sofisticar exaustivamente a administração de inutilidades. Mas a conclusão também se fundamenta no ideário governativo que, nesta fase, só racionaliza duas visões abordadas mais à frente: exames online — com um Plano de Transição Digital (PTD) que se receia transformável num plano quinquenal que conduzirá o ciberproletariado —; e o regresso às escolas e aos municípios da contratação dos professores.

Ainda como ponto prévio, recorde-se que os rankings provocam uma repetida discussão sobre a qualidade do ensino. E a propósito da qualidade, saudava-se, para lá dos preconceitos e dos dogmas, um debate mais actual, abrangente e virado para o futuro. Partia-se da eliminação (em 2018) de rankings em Singapura, um farol para Nuno Crato enquanto ministro. “Aprender não é uma competição” foi o lema. A mudança radical neste país cimeiro no PISA, e nos alunos top performers, incluiu todas as publicações com a posição de um aluno em relação a um grupo, como pautas de classificações e quadros de mérito académico. E se até a pequena e controversa Singapura se antecipou e reagiu ao bullying, à ansiedade excessiva, à descida do gosto pela escola, à subtracção do espaço gregário lúdico e corporal e à adição tecnológica, a nossa realidade exigiria um debate semelhante que interessaria à saúde e à qualidade dos ensinos público e privado.

E voltando às prioridades do Governo, os exames online e o PTD (que têm sustentação organizacional, embora o parque tecnológico esteja obsoleto) reforçam a ideia de que o mundo digital substituirá professores e disfarçará a inacção para contrariar a sua falta estrutural. Contratar-se-á guardadores precários e reforçar-se-á outra preocupação: a escola que contraria a sua diferenciação histórica, e insubstituível, em relação à família e se transforma num espaço de mais ciberconflitualidade. E se se saúda a redução do abandono escolar, sabe-se que só há elevador social com ensino de qualidade.

Por este caminho, só teremos professores em escolas com propinas elevadas onde os conteúdos digitais serão organizados internamente para evitar os massificados e prevenir a imprevisibilidade do final da história com a Inteligência Artificial (IA) que “será sobre máquinas, mas também sobre humanos”. E repita-se: aí, a dimensão das turmas será pedagógica e o currículo completo, as ciências e as letras estarão a par, a avaliação será contínua, exigente e sustentada na confiança nos professores e as regras disciplinares serão simples e “ancestrais”.

E é imperativa a reflexão sobre o percurso com a IA. Quem passou pelas livrarias, percebeu o súbito interesse por 1984 que George Orwell imaginou em 1949. No livro, e numa sociedade controlada por um partido totalitário, a personagem Winston Smith não seguia devidamente, porque tossia, a sessão matinal obrigatória de exercício físico proveniente do telecrã. Até que:
— Smith! — berrou a voz áspera do telecrã.
— 6079 W. Smith! Sim, você! Curve-se mais, se faz favor! Consegue fazer melhor do que isso. Não se está a esforçar. Mais, por favor! Assim está melhor, camarada! Agora, todos à vontade e olhem para mim.

Pois bem: os professores fornecem graciosamente a Google com documentação didáctica pronta a usar. E a Google, ou outra gigante tecnológica, aglutinará o mundo digital escolar e até as editoras de manuais com ligações que inscreverão a pegada digital dos professores e calendarizarão as suas tarefas. Em breve, a IA avaliará os professores ocupando vagas e cotas com Classroom InfluencersYoutubers Ciber Entertainers. Até que chegará o dia em que “berrará a voz áspera do telecrã”.

O outro objectivo é o regresso da contratação local de professores. A memória mais recente desse processo desastroso data do tempo da troika. Foi eliminado de imediato no primeiro Governo de António Costa. Recorde-se: há muito que existem meios digitais para que os concursos por lista graduada sejam um não-assunto de exemplares transparência e eficiência. Só falta vontade política. O poder central quer livrar-se dos concursos de professores, mas ao fazê-lo em simultaneidade com a municipalização agrava o temor de um regime de clientelismo e facilita a precarização. É uma pena. É que os meios serão ainda mais simplificados e velozes no universo 5G e dispensarão os procedimentos de gestão de grande parte das autarquias.

Para além disso, será despesista ter 308 centros de concursos quando um seria moderno e adequado à dimensão do país. E o argumento da selecção do perfil dos professores tem tanto de atávico como de revelador. Por regra, o ensino público não deve excluir alunos, professores e restantes profissionais. Deve elevar as organizações. É a sua natureza. A inclusão é uma pedagogia, e um exemplo, que se destina a todos. É obrigatório organizar as instituições com professores e outros profissionais contratados por concursos públicos confiáveis.

Caminhamos para escolas digitais de massas que certificarão a população, enquanto as de propinas elevadas ensinarão e formarão os que dirigirão a sociedade. Dá ideia que nos conformámos com a descida de qualidade do ensino público e da própria democracia.