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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

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A escola testemunha a perda da arte de associação

22.07.22, Paulo Prudêncio

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Pelo Público em 22 Julho de 2022. Como acordado, o texto está publicado no blogue.

Título: A escola testemunha a perda da arte de associação

Texto:

Recupere-se a "arte de associação" que Alexis Tocqueville considerou, em 1830, a chave da vitalidade democrática americana e o seu desuso uma "séria ameaça para as sociedades liberais". Estude-se a densidade semântica e o sentido político da expressão. Perceba-se, desde logo, que essa tradição teve uma aprendizagem essencial: a brincadeira livre de crianças e jovens, facto quase desconhecido para as gerações actuais.

E quem cresce sem essas destrezas sociais, recorre às autoridades para resolver até os pequenos conflitos. Radicaliza a sociedade e envolve as comunidades numa disrupção que já inscreve o elevador social como o outro valor em crise.

Contudo, este debate requer um olhar geral antes de relacionar o meio escolar com as consequências: empobrecimento das classes médias e comportamentos extremados.

Se recuarmos dois séculos, e ao observado por Tocqueville, registamos uma distinção: associações voluntárias a resolver problemas locais nos EUA, em vez da espera europeia pela acção de nobres ou monarcas. E se os americanos desesperam, conscientes da fragilidade da democracia, pelo regresso da arte de associação, os europeus ainda navegam na totalidade das redes sociais digitais.

Para já, afirme-se: não regressaremos à era pré-digital. A tecnologia mudou os modos de participação cívica e política e tornou-os velozes, difusos e dispersos. Portanto, há que perceber os efeitos da transferência para o digital das redes de regulação comunitária e adaptar sistemas políticos e organizações.

E entrando na análise do nosso universo escolar, saliente-se uma primeira incapacidade na arte da brincadeira livre: a "Education at a Glance 2019", da OCDE, concluiu que as crianças portuguesas do 1º ciclo têm mais 1200 horas de aulas anuais do que o resto dos países da Europa: 5460 horas contra 4258 horas da média da União Europeia.

Depois, há que contrariar os longos debates sobre temas ditos inconciliáveis. São perdas de tempo. Saber versus saber fazer, avaliar versus classificar, educar versus ensinar, ensinar versus aprender e até testar versus provar ou examinar, são exemplos que surpreendem quem usa os "opostos" na sua profissionalidade. Como se fosse possível ser competente sem ter conhecimentos, ensinar sem educar ou aprender sem uma forma de ensino ou de transmissão de conhecimentos devidamente avaliada. 

Mas o problema não foi somente o desperdício de tempo. Foi a desatenção com o essencial e a contínua perda de confiança nas organizações democráticas. É que ao contrário das autocracias, que usam a propaganda e o medo como anestesia, as democracias legitimam-se na interiorização de normas, regras e instituições. Nas democracias não existe a confiança ilimitada em indivíduos. Se se esgota a crença nos eleitos, tudo é contestado. Acentua-se nas organizações que educam crianças e jovens. Se as suas narrativas entram em crise, originam, desde logo, "currículos à la carte" que provocam o desconhecimento da história e fragilizam as ideias de associação e coesão.

Por outro lado, estude-se a redução do elevador social a partir de um ensinamento da história universal: o aumento da escolaridade com qualidade deve-se, numa espécie de distribuição percentual, às seguintes responsabilidades: 60% das sociedades, 30% da organização das escolas e 10% dos professores; sabendo-se, obviamente, que um professor pode mudar a vida de um indivíduo ou de um grupo.

Acima de tudo, a lógica de mercado escolar foi trágica. A competição entre escolas, mais ainda quando a proximidade exigia a cooperação que eleva a inclusão, permitiu selecções de alunos com base nos resultados académicos esperados e empurrou os "que não queriam aprender" para turmas e escolas de baixas expectativas. E o consequente aumento de escolas com propinas elevadas, ainda beneficiou, por incrível que pareça, do noticiado nos últimos rankings: "Ministério da Educação perdeu controlo sobre as notas dadas pelas escolas privadas".

Se é irrefutável que pagar propinas elevadas conta mais do que o talento e o esforço e gera radicalização, é oportuno recomendar aos defensores do mercado escolar uma segunda, e mais atenta, leitura de Adam Smith (2010:80), em Riqueza das Nações, F. C. Gulbenkian, para perceberem os efeitos de se confundir "fábricas de alfinetes" com organizações que geram conhecimentos sem fins lucrativos imediatos. 

A bem dizer, estas correntes intitularam-se rigorosas, modernas e reformistas. Mas, paradoxalmente, nunca conseguiram colocar a escola na primeira linha das organizações. Se o SNS recorrerá, em desespero, a uma direcção executiva para, entre outros objectivos, a decência do sistema informático, é exigível que nas escolas se concretize, simplesmente e no mesmo domínio, a não obtenção de informação repetida e a garantia do acesso profissional ao histórico actualizado dos processos individuais de todos.

Porém, e por fim, o mais extractivo foi a criação autocrática dos mega-agrupamentos e o "taylorista" "poucos pensam e avaliam, muitos executam"Perdeu-se a gestão de proximidade para todos. Até as associações de encarregados de educação (EE) "desapareceram"; desde logo, uma por escola. Excluiu-se os EE das reuniões dos conselhos pedagógicos e das direcções e o seu associativismo transferiu-se para o digital. Pesquise-se por "o WhatsApp é a nova arma dos pais (e está a agitar as escolas)".

E não se desperdiçará tempo com uma análise profunda da vida profissional, e da sua administrativa avaliação, nos agrupamentos. Perceber-se-á a "fuga" dos professores, com efeitos nos valores em debate. Aliás, a prevalência de elementos totalitários em regimes não totalitários, realizada por funcionários que tudo cumprem para sobreviver, cria ambientes injustos e "kafkianos" que são sinais já explicados pela história.

Em suma, aceite-se que a perda da arte de associação, e naturalmente do elevador social, também passa pela escola. Mas eternizar contendas, neste caso se a responsabilidade é mais endógena ou exógena, é que será mais um desperdício de tempo. Se é imperativo consolidar a democracia e deixar um mundo melhor e mais inclusivo, urge agir sobre os problemas identificados sem a inércia, e os preconceitos ideológicos, que impediu enfrentar a tempo a falta estrutural de professores.

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