A escola na segunda vaga inspirada em Milton Friedman
Pelo Público em 13 de Março de 2025. O editor do Público informou-me que este texto tem acesso livre, mas requer um registo gratuito, que só se faz uma vez, no site. Como acordado, o texto também está publicado no blogue.
Título: A escola na segunda vaga inspirada em Milton Friedman
Texto:
Numa fase de queda das aprendizagens e de falta de professores, as democracias ocidentais enfrentam a segunda vaga de políticas ultraliberais inspirada em Milton Friedman. Mas antes dessa análise, sumarie-se a primeira e os seus efeitos.
Quando o Ocidente vivia, entre 1950 e 1970, o momento menos desigual na História dos rendimentos por via do colapso das grandes fortunas na segunda-guerra mundial, a escola pública de qualidade afirmava-se. Perseguia-se um ensino simultaneamente exigente e inclusivo. Essa quadratura do círculo - que dá tanto trabalho como a própria democracia - sustentava o elevador social feito de esforço e talento e atenuava o efeito de bola de neve da capacidade financeira das famílias.
Mas muito mudou na crise petrolífera de 1973. A necessidade de cortes nas políticas públicas travou a democratização da escola. Escaparam os nórdicos (Portugal vivia em ditadura e atrasou-se).
Por outro lado, abriu-se espaço à primeira vaga de políticas ultraliberais inspirada em Milton Friedman (Nobel da economia em 1976), que deu as ferramentas intelectuais aos defensores do mercado desregulado. Abrangiam políticas económicas, públicas e educativas, e cortes a eito na burocracia monstruosa dos ministérios. A ideia sedutora prometia que os impostos dos grandes pagadores se dirigiriam, no caso da Educação, às salas de aula em regime de livre escola. A concretização foi desastrosa: falta de professores e queda das aprendizagens, em resultado de aumento das desigualdades educativas e de cortes salariais nos maiores grupos das administrações públicas - que incluía os professores -; e crescimento de paraísos fiscais, para onde se transferiu parte significativa dos impostos.
Neste milénio, sucederam-se os governos incapazes da contra-revolução. Atingido o ponto de saturação, Portugal iniciou, em 2023 e em desespero, programas de atracção de professores, com pequenos ajustes salariais e menos habilitações. Recuperou-se, justamente, o tempo de serviço: o PS acelerou-o timidamente e o PSD faseou-o na totalidade (um quebra-cabeças, tal o caos nos dados curriculares).
Mas os salários mantêm-se não concorrenciais, apesar de se estimar, desde 2023, que as aposentações provoquem uma significativa e paulatina redução da massa salarial. Por exemplo e indicando o salário bruto anual, uma aposentação no pré-escolar e no 1º ciclo (51.800 euros) equivale a uma entrada (26.600 euros), e nos 2º e 3º ciclos e ensino secundário, e considerando a redução de turmas por idade, três aposentações (155.400 euros) equivalem a duas entradas (53.200 euros). Além disso, o topo dos professores continua no 58º lugar dos 115 índices da administração pública e uma mudança de escalão pode resultar em 50 euros líquidos.
E prevalece a inércia no restante - avaliação de desempenho, gestão das escolas e inferno burocrático -, que mergulha a desautorização dos professores numa engrenagem diabólica. Há uma decadente herança taylorista (um pensa, muitos executam), que vem dos EUA e contraria a "ideia de Europa" (George Steiner, 2017).
Mas agrava-se com uma segunda vaga - novamente de políticas económicas, públicas e educativas - inspirada em Milton Friedman e simbolizada pela serra eléctrica. Acrescenta-se uma espécie de totalitarismo das gigantes tecnológicas. Interessadas numa tele-escola 2.0 que substitua professores e aumente os seus lucros não taxados, beneficiam do poder anti-democrático que Vance anunciou em Munique (a imposição do executivo ao legislativo e ao judicial) e do quarto poder anunciado por Trump: reabrir o tiktok, porque os jovens gostam e votam nas suas políticas trabalhadas pelo algoritmo do ódio e das notícias falsas.
Em suma, se é expectável que só a limitação do digital salve a democracia, o Ocidente arrisca-se à encruzilhada que associará a essa limitação a falta de professores e a queda das aprendizagens. E é bom recordar o célebre programa televisivo de Milton Friedman, Free to choose, laudatório da produção do lápis de carvão em mercado desregulado. Falhou redondamente. Duas décadas depois, a China dominava o mercado mundial dos lápis através da sua indústria submetida ao partido único. Se o "lápis digital" percorrer um caminho semelhante, a obsessão com a desumanização taylorista acelerará a tentação para a autocracia. Urge reerguer a "ideia de Europa". Quebre-se a inércia e antecipe-se uma escola pública feita por humanos livres, esperançados e cooperantes.