A Educação 18.263 dias depois do início inteiro e limpo
Pelo Público em 16 de Abril de 2024. Como acordado, o texto está publicado no blogue.
Título: A Educação 18263 dias depois do início inteiro e limpo
Texto:
Talvez o substantivo gratidão seja o que melhor define o sentimento da maioria dos portugueses em relação aos corajosos revolucionários do 25 de Abril de 1974. Acima de tudo, o dia "inicial inteiro e limpo" enraizou o valor fundador: a liberdade em respeito pela liberdade do outro. Mas como se percebeu desde a Grécia Antiga, a democracia é frágil. A sua consolidação exige um compromisso diário com outro substantivo irrevogável: confiança. Confiança nos outros e na democracia como o sistema que originou as sociedades mais avançadas e inclusivas.
Aliás, há um tema que foi historicamente o cúmulo da desconfiança e que contribuiu para o colapso de regimes: a corrupção. E 50 anos depois do 25 de Abril, é oportuno revisitarmos sumariamente o que andámos a fazer nesses 18.263 dias, para que a corrupção - a pequena, a média e a grande - provoque tanta desconfiança, tanto mal-estar, e seja usada com sucesso eleitoral por forças demagógicas e autoritárias.
Desde logo, a perenidade da democracia relaciona-se directamente com o exemplo. Não adianta preencher a retórica com a ética republicana, se depois o legislador - e num ambiente com uma justiça lenta e ineficaz - não só não a concretiza, como essa inaceitável falha é usada para a "eternização" em cargos públicos ou para climas de caudilho e de pequenos feudos que se apropriam do bem comum.
Repare-se em dois fenómenos elucidativos em diferentes escalas: o poder local e o sistema bancário. Eduardo Souto Moura, com 40 anos de relações com a administração portuguesa, foi taxativo (programa "Primeira Pessoa" a partir do minuto 23, na RTP Play): "o pior da corrupção na nossa administração é o poder local".
E recorde-se que foi só neste milénio que o poder local, onde se formaram os quadros partidários, conheceu a essencial limitação de mandatos. Se seria elementar dois mandatos na administração pública, após uma ditadura de 48 anos e com mais de três décadas com o mesmo chefe de Governo, a generalidade do país conheceu autarcas com cerca de duas ou três décadas de mandatos consecutivos.
Por outro lado, há muito que se testemunhou a concessão da licença de banqueiro a cidadãos de reconhecido valor moral. Pois bem, somos um lamentável estudo de caso que espelha a conclusão (2001) de Joseph Stiglitz: os EUA exportaram o seu modelo de corrupção, que foi em grande parte responsável pela crise de 2008.
A propósito, os 18.263 dias têm um marco de fragilização exactamente nessa primeira década do milénio. O estado da Educação seguiu a tendência, e 20 anos é o tempo mínimo para se perceber o resultado das políticas.
Dividamos os 18.263 pelos dois séculos. Os dias do século XX perseguiram ideais de progresso: serviços públicos qualificados, eficientes e sem privatização de lucros; economia de mercado nos restantes sectores, com o reconhecimento do altruísmo dos criadores de emprego e de lucro essenciais ao crescimento económico e à distribuição da riqueza. O Serviço Nacional de Saúde elevou a qualidade da prestação de serviços, e a massificação da Escola Pública permitiu o avanço notável das qualificações e da frequência escolar entre 2000 e 2022. Cumpriram o programa social-democrata do pós-guerra, ao contrário dos bancos e das grandes empresas que se começaram a afundar no capitalismo desregulado.
Só que, no século XXI, a Educação não resistiu. Foi alvo (e a Saúde também) da inscrição ultraliberal nos processos de gestão. Só a luta incessante dos professores da escola pública conteve o mais grave: liberdade de escolha da escola e privatização de lucros em escolas privadas financiadas pelo Orçamento do Estado. Os EUA, o Chile e a Suécia são exemplos desse desastre. Leia-se, sobre os EUA, Diane Ravitch e os relatórios dos programas de avaliação de professores da Fundação Gates ou do "Obama Race to the Top", sobre o Chile, Ernesto Schiefelbein e José Weinstein, e sobre a Suécia, Andreas Bergh e Johan Wennström.
Mas, por cá, insistiu-se na aproximação ao insucesso. 20 anos depois, os resultados estão aí: foge-se a ser professor, aumentam as desigualdades educativas e os alunos aprendem menos. Responde-se desesperadamente à falta estrutural de professores e à transição digital com concursos de professores realizados localmente e regimes de monodocência suportados em conteúdos massificados pelas gigantes tecnológicas.
Agrava-se, porque se sucedem ciclos políticos incapazes de mudar o essencial. Nada se inventa. Teima-se na farsa administrativa que avalia professores à mercê da decisão autocrata e da prevalência da técnica sobe os direitos fundamentais, que transformou a escola no último reduto do caudilhismo e asfixiou a essência do exercício de professor: a esperança. Empurrou-se, como tanto se avisou, os eleitores - e os novos eleitores - para a radicalização. Os resultados eleitorais falam por si. Como se disse, os eleitores, principalmente os mais novos, seduzem-se com a busca da política, do humanismo, dos direitos fundamentais e da natureza sem rivalidade com a tecnologia, e rejeitam a opção desequilibrada por esta e o desprezo pela escola como oficina da democracia.
Devolver o ambiente inteiro e limpo à escola, é, além do mais, o que está nas nossas mãos. É descobrir o fio à meada, como respondeu Confúcio à pergunta se era instruído e culto. Esgotou-se o tempo da inacção. A escola não é tudo, mas é quase tudo e parte inalienável.
E o quotidiano político torna-se ainda mais crucial para a sobrevivência da própria democracia, já que tristemente a sociedade mergulhou em distopias, fragmentações, ultraconservadorismos, nacionalismos e guerras culturais. Não haja ilusões. Este ambiente, que se generalizou nas democracias ocidentais, interessa ao poder financeiro imune ao escrutínio democrático. A receita é pagar menos impostos e desinvestir em serviços públicos. Os ricos terão as suas escolas. O problema é o que nos diz a História: quando se instalar o caos, a tragédia fará dos pobres as primeiras vítimas, mas acabará por atingir todos. Crie-se um novo horizonte. Sem isso, o futuro em democracia não durará 18.263 dias.