silêncio dos inocentes
Mais um tópico a acrescentar ao importante debate sobre o papel do quarto poder numa democracia mediatizada.
Não concordo com a conclusão de que "os diversos serviços apenas cumpriam zelosamente a lei": conhecemos casos e mais casos em que as questões são outras: vemos o inadaptado temor dos responsáveis onde deveríamos ver o exercício corajoso de uma autonomia responsável e nunca decretada; vemos mesquinhez e incompetência em vez de descrição e profissionalismo; vemos pequenos poderes preenchidos por tiranos inúteis e pouco esclarecidos em vez de termos de lidar com lideranças civilizadas e competentes; vemos centralismo acéfalo e castrador em vez de nos confrontarmos com decisões assentes no exercício de uma cidadania esclarecida, limpa e assumida; enfim.
Mas ainda pior, embora estas matérias não possam nem devam ser quantificadas, do que a situação que relatei, é a dos "inocentes" que, não tendo voz, se vêem alvo de processos silenciosos que destroem as suas vidas no universo menos "visível" dos seus corpos: o da personalidade e da condição psicológica. Os processos semelhantes aos que de modo tão genial Franz Kafka nos relatou, continuam presentes na nossa sociedade. Envergonham-nos e remetem-nos para níveis que tipificam as sociedades não democráticas. Sabemos muito sobre a condição humana, é certo, mas também é seguro que a democracia nasceu para servir os homens todos. Sabemos que o difícil e exigente exercício democrático obriga à leitura atenta de Amos Oz e à contenção que, tantas vezes objecto de incompreensão precoce, tem de substituir a vontade de prepotência que espreita a cada esquina: "nada que é humano nos deve ser estranho".
Estes casos merecem uma atenta reflexão e uma pronta denuncia: o exercício da democracia tem de ser diário e na área de intervenção de cada um de nós, mesmo considerando que "a condição soberana do saber é o silêncio", Ibn Almuqaffa, Pérsia, 721-757, em Kalila e Dimna.