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Apetece-me dar voz à escola. Desculpem-me a ousadia e também a maçada. Vou elevá-la a uma entidade nivelada pelos anjos de Rilke e lembrar-vos-ei que a Blimunda de Saramago, antes de deglutir a sua côdea, via os Homens mais por dentro do que por fora; como convém. Elevar a escola e deixá-la ver-nos por dentro terá algumas desvantagens: da devassa da sua visão resultará a nossa indefesa exposição. Por lá, nos lugares mais altos, ela encontrará apenas alguns dos Homens. Certo e sabido.
Não pretendo mostrar-vos um libelo acusatório dos encarregados de educação. Elevo-os à categoria dos belos, mesmo sabendo que podem tornar-se terríveis e capazes de nos destruir.
Opina-se com ligeireza sobre o valor da escola. Não lhe elevam a importância. Acolhem-se nela quando os argumentos estão aflitos de razão.
Pensar que a relação destas duas entidades - a escola e os encarregados de educação - se esgota nos mecanismos formais existentes, é de uma inverdade comprovada. É uma relação cheia de mistérios não explicados e convenientemente imergidos. É feita de matéria nem sempre estéril, composta de duras, e mútuas, acusações. Mais do que erradicar a exclusão escolar, pede-se à escola a tarefa de eliminar a exclusão educativa.
Continua certo que o índice socio-económico das famílias representa o princípio dos obstáculos. São certas as desvantagens das crianças mais pobres de riquezas materiais. Mas a escola vê, com clareza e no amargo jejum, muito para além desse mensurável indicador. E importa falar-vos dessas outras confidências.
Falam-nos, com um carácter quase decisivo, das insuficiências familiares no acesso aos bens culturais. Segredam-nos, com temeridade, da importância da distância que os jovens percorrerem entre a escola e a habitação. Quase que desistem quando falam dos problemas relacionados com os filhos dos anjos em queda. Requerem-se soluções de longo prazo. Confidenciam-nos, no entanto, a vivência de momentos de impaciência e mesmo de alguma incredulidade: beliscam-se muito quando observam uma refeição familiar com a comunicação permanentemente ocupada pela tal caixa que mudou o mundo; entristecem-se quando vêem o seu jovem aluno confrontado com a impossibilidade do diálogo por falta de tempo, que é sempre uma outra maneira de dizer: por falta de vontade.
Renovam-se de esperança quando se confrontam com as inúmeras presenças dos encarregados de educação. São legiões de gente que ama de verdade e que está sempre sobrevoando. Que aparece, mesmo quando a atmosfera de emancipação juvenil não o aconselha. Que fala aos jovens. Que os questiona. Que os aborrece. Que lhes diz que não, para que aprendam a fazer o mesmo. E desses, mais ricos ou mais pobres, nota-se a sua permanente presença na escola com a uma doce aura de invisibilidade. Não, os belos anjos nem sempre são terríveis.
(Reescrito. 2ª edição. Texto publicado numa revista da especialidade na entrada deste milénio)