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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

pé na lua

15.08.10

 

 

 

É uma história que atravessa o tempo, com três personagens do século passado e seguramente com o mesmo código genético. A avó, a sua filha e a neta. A avó nasceu em vinte e oito, a sua filha em cinquenta e nove e a neta em oitenta e seis. Apesar disso, o destino reservou-lhes as mesmas surpresas, traçou-lhes os mesmos obstáculos e, por mais incrível que pareça, em idades iguais.

 

Influenciada pelo imaginário das conversas dos adultos do seu tempo sobre as primeiras corridas de bicicleta para ciclistas masculinos, a avó tinha um sonho quase obsessivo e muito avançado: vestir um par de calças e pedalar numa bicicleta de verdade. No Natal dos seus cinco anos, e apesar do mesmo pedido que seu irmão - uma bicicleta de verdade - apenas ele foi contemplado. O melhor que conseguiu foi um conjunto para o ponto cruz, com a agravante de a indústria dessas coisas para as crianças ainda ser incipiente e o dedal ser enorme e as picadelas das agulhas inevitáveis.

 

Todavia, a sua filha, está mais que visto, desde logo se transformou numa ciclista de corpo inteiro. Contra ventos e marés, convém que conste. A sua filha, apesar dos seus quatro anos, não entendia porque é que a bicicleta do irmão tinha um quadro em forma de triângulo e o dela não. É que ambos vestiam um par de calções, comprados até na mesma loja de roupas para crianças, embora a cor obedecesse à dicotomia rosa versus azul marinho. Vivia-se a época da primeiras emissões televisivas e os campeonatos de hóquei em patins preenchiam o imaginário das glórias lusitanas. Foi com o espanto de todos que a filha, então com cinco anos, pediu no Natal, "imitando" o irmão, o mesmo equipamento completo da selecção nacional do dito jogo. Que momento. Conseguiu receber um par de patins com uma bota muito branca mas para um pé 36 (era hábito nesse tempo dar às crianças algo que só usariam quando dominassem a razão) acompanhado de um vestido de cor rosa, cheio de folhos, cópia literal dos usados pelas meninas patinadoras que abrilhantavam os invisíveis cinco minutos dos intervalos dos jogos. Foi parar ao sótão onde ficou para a eternidade.

 

Claro que a neta cedo patinou, de camisola rosa ou azul, e teve sempre bicicletas. Os tempos eram outros. Mudava a fralda das bonecas, brincava às cozinhas com os meninos amigos que também se juntavam para dar uns pontapés na bola. Tudo estava assumido. Para a neta, as tarefas domésticas, os passeios de carro e todas essas coisas tanto eram feitas com o pai ou com a mãe. Mas, (não disse já que há sempre um mas ), também vos digo que talvez ou ainda bem.

 

Era agora o tempo das conversas intermináveis sobre os jogos de futebol. E como o código genético se manteve acordado eis que a neta começa a sonhar, até porque parece que tinha um certo jeito, em jogar umas futeboladas na escola com os amigos rapazes, e quem sabe, um dia jogar num estádio a sério e com um equipamento verdadeiro.

 

Tinha a neta os seus cinco anos, estava no último ano do jardim de infância, e surgiu a primeira oportunidade de concretizar o seu sonho. A educadora da turma decidiu que na festa de final de ano a turma da neta iria fazer um jogo de futebol entre as crianças e os pais. Ideia brilhante. Deixou todos em polvorosa. A noite anterior foi interminável. No dia grande, tal festa de natal já nossa conhecida, a educadora toma a sábia decisão: os rapazes, e só os rapazes, formariam a equipa e as raparigas seriam a "claque". Nem conto mais.

 

Digo-vos que as encontrei num mês de Maio de 1999, as três, a avó a sua filha e a neta, sentadas num mesmo sofá. Estavam com o sorriso tão bonito que nem sei descrever e viam um jogo na televisão. Era a final do campeonato do mundo de futebol feminino. Percebi tudo num instante. É certo que a neta não jogava, mas também quando o Neil Armstrong pôs o primeiro pé na lua não fomos todos que o fizemos?

 

(Reescrito. 2ª edição. Texto publicado numa revista da especialidade na entrada deste milénio)