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Primeiro que tudo, e convém esclarecer, 30 horas é uma questão pessoal. Não consigo resumir nada a tão pouco tempo. Sou pouco dado a coisas rápidas. Sonhei viver uma eternidade acompanhado das pessoas que mais amo. A angústia da luta contra o tempo desgosta-me nas horas quase todas. Feitios. Acima de tudo, confesso, gosto da solidão do meu pensamento. Adoro elaborar as ideias. É um prazer indizível. É francamente o meu jogo predilecto.
Falar das 30 (ou das 32, ou das 34, ou, mesmo, das 36) horas escolares, engloba a minha, já confessada, sedução pelo tempo. Pela sua inexorável voracidade. Mais do que a impossibilidade do eterno retorno, as aulas escolares sempre me pareceram um saltitar de jaula em jaula. Educámos, educamos e educaremos de acordo com a pressa dos tempos que, entretanto, correm. Com tanta pressa, pela superficialidade ficaremos. Escolarizados e condenados, mas não sages.
Tantos e quase todos - querem ter um lugar ao sol na composição dos programas escolares. Tanto há para ensinar. Incontestável e legítima ambição. Da intuição à retórica, tudo justifica a necessidade de mais tempos escolares. Desde as associações científicas de professores aos sindicatos de docentes, passando pelos membros dos governos ou das respectivas oposições, todos advogaram a favor da redução do número de aulas escolares. Fez escola e foi consensual. O resultado de todas essas consultas e discussões teve, quase sempre, como resultado a manutenção de quase tudo.
Os argumentos repetiram-se. Até podemos imaginar um lapidar diálogo. Diz o docente da disciplina x: Têm que reduzir o número de aulas escolares, nem sei como é que os alunos aguentam isto. Responde o docente da disciplina y: Sim, sim. Mas nas aulas da disciplina z, pois nas minhas, ou nas tuas, seria o caos, não te esqueças.
Tarefa inumana para o decisor. Por tudo isto, ser criança em tempo escolar implicará, cada vez mais, uma percepção alargada e cheia de inúmeras imagens. A sua relação com os mestres será efémera. Curtos muitos e intermitentes- períodos de concentração serão os segredos de uma boa aprendizagem (entretanto, pouco ou nada se sabe sobre a forma como cada um aprende. Mas não compliquemos). A figura do mestre perder-se-á na razão da sua multiplicidade. A criança necessitará de recorrer a fontes mais velozes, associará ao desperdício de tempo a ideia do pecado original. Terá saudades do futuro?
Na ânsia do minimalismo economicista, projectado desde as nanoteconologias à magreza corporal, nada escapa a esse círculo estonteante. O zapismo da vida leva-nos a esta angústia. Andamos tanto para não sairmos do mesmo sítio (e, no entanto, a ciência avança, todos os dias). É tudo curto, rápido e preciso. Devorar o Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, sete volumes, cerca de 4000 páginas em times new roman 09, ficará fora de qualquer programa escolar. É pena. A eternidade toda, paradoxalmente, em sete volumosos volumes. Volta a ser, novamente, uma questão do universo pessoal. A única revisão curricular e com as mais variadas posições horárias - está dentro de cada um de nós. Um postulado para a eternidade, digo eu.
Apetece-me dar voz à escola. Desculpem-me a ousadia e, já agora, a maçada. Mas elevo-a a uma entidade nivelada pelos anjos de Rilke. Ou ainda, lembrar-vos-ei que, a Blimunda de Saramago, antes de deglutir a sua côdea via os Homens mais por dentro do que por fora, como convém. Elevar a escola e deixá-la ver-nos por dentro terá, porém, algumas desvantagens. Da devassa da sua visão resultará a nossa indefesa exposição. E por lá, nos lugares mais altos, ela encontrará, com frequência, apenas alguns dos Homens. Certo e sabido. Não pretendo mostrar-vos um libelo acusatório dos encarregados de educação. Elevei-os à categoria dos belos, mas sabemos que esses, e mesmo esses, podem tornar-se terríveis e capazes de nos destruir. Opina-se com ligeireza sobre o valor da escola. Lá bem por dentro não lhe elevam a importância. Acolhem-se nela quando os argumentos estão aflitos de razão. Culpam-na de tanta e mais alguma coisa, até de não consolidar as asas de uma boa educação. Comprovemos, convocando para isso alguns dos nossos encarregados de educação. Saibamos quem decide pela localização, e pela insuficiência de qualidade, das diversas construções escolares. Ou então, questionemos quem reduz, ou não aumenta, a percentagem do P.I.B. (produto interno em bruto) para a educação. Por lá encontraremos, certamente, registos discursivos laudatórios da importância da escola, assinados por encarregados de educação. Nuvens negras. Pensar que a relação destas duas entidades a escola e os encarregados de educação - se esgota nos mecanismos formais existentes, é de uma inverdade comprovada. Mais do que o tradicional encontro com o director de turma, associado à ténue proliferação de presenças, ou ausências, nos diversos órgãos de gestão das escolas, esta é uma relação cheia de mistérios não explicados e convenientemente imergidos. São feitos de matéria nem sempre estéril, composta de duras, e mútuas, acusações. Mais do que erradicar a restrita exclusão escolar, pede-se à escola a nobre tarefa de eliminar a exclusão educativa. Continua certo que o famigerado índice socio-económico das famílias, representa o princípio dos obstáculos. São certas as desvantagens das crianças mais pobres de riquezas materiais. Mas a escola vê, com clareza e no amargo jejum conhecido, muito para além desse mensurável indicador. E importa falar-vos dessas outras confidências. Os problemas educativos sobem aos céus da escola nas formas mais variadas. Falam-nos, com um carácter quase decisivo, das insuficiências familiares no acesso aos bens culturais. Segredam-nos, com temeridade, da importância da distância que os jovens percorrerem entre a escola e a habitação. Quase que desistem quando falam dos problemas relacionados com os filhos dos anjos em queda. Requerem-se soluções de longo prazo. Confidenciam-nos, no entanto, a vivência de momentos de impaciência e mesmo de alguma incredulidade: beliscam-se muito quando observam uma refeição familiar com a comunicação permanentemente ocupada pela tal caixa que mudou o mundo; entristecem-se quando vêem o seu jovem aluno confrontado com a impossibilidade do diálogo por falta de tempo, que é sempre uma outra maneira de dizer, por falta de vontade. Mas renovam-se de esperança quando se confrontam com as inúmeras presenças dos encarregados de educação. São legiões de gente que ama de verdade e que está sempre sobrevoando. Que aparece, mesmo quando a atmosfera de emancipação juvenil não o aconselha. Que fala aos jovens, que os questiona, que os aborrece. Que lhes diz que NÃO, para que aprendam a fazer o mesmo. E desses, mais ricos ou mais pobres, nota-se a sua permanente presença na escola. Registada, mesmo com a sua doce aura de invisibilidade. Não, os belos anjos nem sempre são terríveis.
Sei que muitos de vós pegarão nesta publicação e limitar-se-ão ou a ler os títulos ou a salpicar as mentes com uma, mais que diagonal, leitura do primeiro parágrafo. Garanto-vos que se estiverem cheios de pressa para irem a lugar nenhum, que saltem, sim, que saltem já para os dois últimos parágrafos e que fiquem logo com o mais importante desta crónica. Não quero, contudo, condicionar o vosso apetite literato nem tão pouco ilustrar uma estimável característica da personalidade a generosidade. Serei apenas considerado pelos mais atentos e eruditos um verdadeiro realista. Escrever em prosa, também podia ter sido outro o género escolhido se para aí tivesse alma e sabedoria, sobre a atmosfera das funções que actualmente exerço é, para mim, uma verdadeira odisseia. E como sou um presidente em fim de mandato e em que a coisa até nem correu nada mal, é preciso uma certa dose de coragem, pois corre-se o risco de se ser considerado um laudatório em causa própria. Não quero, contudo, começar a correr por aqui fora sem vos dar a conhecer algumas das minhas preocupações quando me iniciei nestas andanças. Existirá alguém que não conheça o arquétipo do director de escola? Sempre tive um certa desafectação por essa figura. E que raio, todos gostamos de fazer boa figura. Ouvi, vezes sem conta, que alguém que ocupa lugares de poder passa logo a ser suspeito. Nunca mais o olham da mesma maneira. Vais fazer isso? Por esse dinheiro? É só chatices. Confidencio-vos que não foi preciso mudar uma vírgula no que quer que eu fosse. Aos putativos candidatos, aconselho-os a estarem preparados e a irem aos treinos ou então
e se não houver limitação de mandatos auto-limitem-se. Depois, é preciso não nos levarmos demasiado a sério mas ouvirmos os outros exactamente na medida oposta. A linguagem exprime emoções, aconselha e organiza os nossos conhecimentos e o nosso mundo. E isso não se faz sozinho. Passadas as sempre protocolares questões prévias, entramos na parte mais difícil da crónica. Até a mim me apetece escrever já os últimos parágrafos. Mas ficavam coisas importantes para dizer, quem sabe se as mais fundamentais. Pois bem, tudo se resume a coisas muito simples. Ideias, claras e distintas - com princípio, meio e fim - muita dedicação e uma boa equipa, no sentido mais moderno do termo. Um apelo constante a uma mais do que instintiva capacidade para sobrevoar. Uma discrição absolutamente religiosa nas questões que envolvem cada uma das pessoas - mesmo com as mais mesquinhas e maldizentes. Uma vontade firme em aplicar as boas ideias dos outros. Para além dos tradicionais suplementos profissionais dos docentes enfermeiro, médico, psicólogo, assistente social, engenheiro, arquitecto, autarca, decifrador de ofícios e circulares e prospector dos grandes desígnios da nação a pós-modernidade requer: analista e programador informático, especialista em informática na óptica do utilizador, gestor de sites, electricista e mecânico de impressoras e cabos de rede e um domínio fluente dos diversos idiomas usados nos quinze da união europeia e nos países do antigo leste europeu. Feita a súmula eis que nos confrontamos com os tão desejados últimos parágrafos. Vou contar-vos dois acontecimentos, passados num mesmo mandato. O primeiro no início e o segundo no fim. Façam as devidas interpretações sem deixarem de considerar a sua localização temporal. Estava eu a tentar arrumar a casa quando me confronto com uma porta, que se destinava a fechar um dos corredores, prostrada no chão. A avaria relacionava-se com a faixa lateral que suporta as dobradiças, que tinha sido arrancada através de um desajeitado e adolescente empurrão. Solicito a presença imediata da pessoa experiente neste tipo de arranjos e questiono-a sobre as possibilidades de salvação da dita. Resposta pronta: isso não é um problema, não vai ser necessário comprar outra. Tem arranjo. Coloca-se uma faixa etária à volta da porta e prontos. Uns anos mais tarde, estava eu a fazer um daqueles intermináveis telefonemas que são vitais para o futuro da instituição. Escolho sempre as horas de menor movimento e deixo a porta do gabinete estrategicamente encostada. Não estava de frente para a porta, mas sentia que alguém a abria e a voltava a fechar. A cena repetiu-se umas cinco vezes. Quando finalmente o telefonema acabou, dirigi-me ao hall e encontrei-o vazio. Nada a fazer. Encontro, horas depois, a professora de uma das turmas do 1º ano de escolaridade (a escola é uma básica integrada). Conta-me que tinha enviado um aluno brasileiro, de seis anos apenas, ao gabinete do conselho executivo, para solicitar umas informações imprescindíveis. O miúdo, depois de uns bons quinze minutos, regressou e com um ar contrafeito sentenciou: o cara está barricado e não larga o telefone.