"- Sim, Marnus. Até as maçãs nós trouxemos para este país"
Este post vai ao osso. Aconselho os mais susceptíveis a não o lerem.
Como o racismo é um dos piores flagelos que transporta o ódio entre os seres humanos, vou usar a cor da pele para caracterizar as pessoas. Perceberá a decisão mais à frente.
O dia está preenchido pelo falecimento de Nelson Mandela. Leio algumas divergências quanto ao período anterior à prisão de Mandiba.
Mandela não foi perfeito? Pois bem. Mandela combateu os Africandêr (também conhecidos por boers, de predominância holandesa com mistura de alemães e franceses) que dominaram o poder na África do Sul durante o apartheid. Este grupo de fanáticos, que martirizou os negros sul-africanos, é também conhecido por ter trazido as maçãs holandesas para a pátria de Mandela.
Já se sabe: a violência gera violência. Mark Behr, um sul-africano branco, natural da Tanzânia, é um escritor do nível dos prémios Nobel J. M. Coetzee e Nadine Gordimer. O seu dilacerante romance (1995), amplamente premiado, "O Cheiro das Maçãs", é incontornável para se perceber quem Mandela combateu e para se entender ainda melhor a sua invulgar humanidade (e todos os outros substantivos e adjectivos que se vão lendo e ouvindo).
A obra de Mark Behr é impossível de generalizar a todo um grupo de pessoas? Claro que sim. Nem todos os sul-africanos brancos se reviam na cultura africânder, nem mesmo alguns destes. Mas o que Mark Behr nos explica é o comportamento médio dos Africandêr e a origem do seu ódio. Foi considerado um contributo decisivo para convivência civilizada entre as pessoas na África do Sul.
A imagem da biografia de Mark Behr não está muito legível mas lê-se.
O narrador do romance é Marnus, um jovem branco na puberdade. Frikkie é um amigo seu, branco, desde o pré-escolar.
Leu bem. O romance desmascara, em 200 páginas, a mentalidade africânder com uma ironia devastadora. Aconselho a leitura. Escolhi umas quatro passagens que, como disse, vão ao osso. Se é mesmo susceptível, pare por aqui. Se leu a "Manhã Submersa" de Vergílio Ferreira talvez não estranhe. Os paralelos vão para além da geografia.
O romance é preenchido pela mesma intensidade destes bocados.
A cena começa com um serão em casa de Marnus. Frikkie está presente. Os pais de Marnus e um general também.
Depois, vão todos dormir na casa dos pais de Marnus onde passaram o serão. Dei um salto nas páginas, mas parece-me suficiente para se perceber o tal cinismo difuso de Marnus.
Não publiquei a página seguinte para não ir para além do osso.
Antes de terminar o post com o final do romance, testemunho uma das minhas perplexidades com o comportamento dos Africânder nas férias grandes que passavam na então Lourenço Marques, cidade onde eu vivia.
Os Africânder eram racistas em primeiro grau. O local que mais frequentavam na capital moçambicana era a Rua Araújo onde se prostituíam, desde muito jovens, as negras moçambicanas que só tinham uma alternativa de emprego: serem criadas (era assim que se denominava a sua segunda escolha) das famílias brancas portuguesas. Os meus amigos mais velhos aproveitavam a época para abrirem "a caça às bifas" (que eram as muito jovens Africânder, brancas, casadas com os tais boers que inundavam a Rua Araújo) que ficavam "abandonadas" e que gozavam da fama de fáceis.
Lembrei-me de contar estes detalhes para introduzir o leitor no texto final. False Bay (Afrikaans Valsbaai, Baía Falsa em português) existe mesmo.