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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

o reverso de um “activo político

18.01.09, Paulo Prudêncio

 

 

 

 

Recebi de um dos visitantes assíduos do meu blogue o texto que se segue. O autor é o Vasco Tomás, professor de Filosofia numa das Escolas das Caldas da Rainha. O texto já tem algum tempo mas é intemporal. A atarefada gestão do blogue nos últimos tempos tem deixado estas tarefas adiadas. 

 

Tem o seguinte título: "O Reverso de um “activo político” ou contra a contabilidade política de Vital Moreira".

  

 "Habituámo-nos a admirar o saber jurídico e a sagacidade política, bem como a coragem e a eficácia persuasiva dos discursos parlamentares de Vital Moreira, sobretudo nos tempos idos de nobre memória. É com espanto que assistimos, como o Narciso do mito, à sua queda mortal (deliberada?) na sombra da sua derradeira paixão. 

Vem isto a propósito dos textos, insertos no seu blog "Causa Nossa", do dia 15 de Novembro, onde toma posição sobre a "vexata questio" do modelo de avaliação dos professores.  

As afirmações que nesse texto ocorrem são contestáveis de vários pontos de vista. Vejamos. 

Começa a sua descrição da situação usando a palavra "guerra", sendo a partir dela que fala dos meios que podem assegurar uma vitória. É estranho este modo de situar a problemática existente por parte de quem, pelos seus pergaminhos jurídicos, seria de esperar outra linguagem mais adequada a quem se preza de ter contribuído para a arquitectura constitucional do nosso Estado de Direito. Com efeito, entre posições conflituais, num Estado de Direito, há controvérsia, que pode revestir várias formas de expressão prática, mas nunca guerra. Este belicismo parece trair uma pulsão anti-liberal da parte do autor, que não é pertinente dentro do quadro constitucional em que estamos inseridos. 

Podia pensar-se que a palavra “guerra” teria sido usada com alguma desprevenção linguística, própria do tipo de texto em que se insere. Contudo, a sequência do texto, onde surgem expressões como “o Governo só tem uma via, se não a quiser perder”, devendo “aguentar firme e ganhar a população a seu favor”, confirmam o carácter deliberado do uso daquela palavra. O que agrava o que se disse no parágrafo precedente. 

Acerca da génese do "estado de guerra" a que se chegou, não há qualquer referência. Como se o que o Estado decreta, a coberto da sua autoridade soberana, tivesse de ser obedecido, indepentemente da qualidade do que aí se exara, dos meandros da sua constituição e dos efeitos directos e colaterais  sobre aqueles a quem a medida directa e indirectamente implica. 

Sem visão sistémica do que está em causa, cai-se na dogmática de que se é lei é para ser cumprida, limitando-se o cidadão a uma contestação inoperante em relação a um poder que, por várias vezes, se recusa liminarmente a qualquer interrogação sobre a substância da medida tomada. 

O modo como Vital Moreira justifica o seu belicismo, se bem que escorado em toda uma tradição de pensamento, é significativo: o que move os professores são os seus “interesses corporativos”, de natureza particular; o que move o Governo, intérprete do geral, é o interesse nacional”. É fácil, a partir desta dicotomia, tirar a conclusão, que serve o desiderato do autor. 

Mas há que questionar: o que os professores defendem é corporativo, apenas e só? Não é verdade que, pelo menos nos últimos tempos, a situação tem forçado a maioria dos professores a trabalhar para a escola muito além das horas a que, de acordo com o seu horário de trabalho, estão obrigados? Se assim é, quem viola a lei e a própria Constituição: os professores que recusam a carga e o que a determina, ou o Governo que teima  em manter intransigentemente a sua posição? 

Além disso, há alguma objectividade científica em reduzir o alcance do que está em causa apenas aos professores, como se a acção destes no quadro em que decorre não tivesse incidências no restante tecido social envolvente? 

E como entender as tomadas de posição, vindas dos mais variados quadrantes da sociedade, a apelar ao bom senso de todos, sobretudo do Governo, para que pare, escute e olhe, como antigamente se avisava a quem pretendia transpor um caminho atravessado por uma linha-férrea.  

Vital Moreira esqueceu a velha dialéctica de Marx, que agora talvez lhe fosse útil para não cair com tanta displicência nas dicotomias próprias de um pensamento redutor. 

Como exemplo de que o seu pensamento é redutor repare-se na estratégia argumentativa que usa, tomando a parte pelo todo quando refere que, se perder esta batalha da educação, ao ceder aos professores, o Governo põe em causa toda a sua autoridade reformadora, o seu activo político. Mas então as outras reformas não são em si mesmas consistentes? Ou serão os cidadãos néscios ao não o reconhecerem? Tem assim tanto peso no arsenal das reformas esta reforma na educação? Esta clarividência visionária obnubila qualquer mente prosaica.   

Aconselho o senhor Professor Vital Moreira a pensar que talvez não haja apenas a razão do Governo. Pode ser que haja uma outra razão, a dos professores. Se quiser apreender isto –trata-se dum problema de vontade e não de inteligência - verá que esta  razão se exerce a posteriori, a partir de uma reflexão a partir da experiência concreta e plural inerente à actividade docente, por um processo eminentemente dia-lógico. A outra razão, ao invés, segue uma metodologia inversa desta: parte de um pseudo-saber teórico, a priori, minado por um conjunto de pressupostos assentes na performatividade do sistema de ensino pensado em termos tecnocráticos, com uns simulacros de participação por parte dos sindicatos. O edifício de avaliação docente, de gestão escolar, etc, não pode ser o mesmo, consoante nos movamos num horizonte de racionalidade ou noutro. 

E entre a razão dia-lógica dos professores e a razão mono-lógica dos "déspotas obnubilados" do Ministério e quem lhes dá cobertura não há solução de continuidade. 

Quem tem a mínima consciência cultural sabe em que quadro de racionalidade se movem, hoje, as ciências, tanto as empírico-positivas como as humanas.  

Mas este saber parece não ter ainda chegado às instâncias que nos governam e seus acólitos. 

Que ao menos venha a prevalecer o critério da humildade democrática, que exige paridade entre quem procura encontrar consensos e equidade nas soluções encontradas. 

Parece que nem aquela consciência cultural nem esta humildade democrática sopram dos lados da 5 de Outubro. 

Não é o diferendo o cerne fundamental do político? Doa a quem doer, não se pode tolerar o arbítrio de uma pseudo-razão que já deu uvas.

 

 

Há que procurar agora, empenhadamente, o consenso, sendo para isso necessário cessar o “estado de guerra”.