pequenos passos
(da ontogénese da humilhação à filogénese da implosão)
Teria uns 12 anos e viajava com o meu pai numa estrada moçambicana fora dos centros urbanos. Estava, como quase sempre, um dia muito quente. Parámos numa "cantina" - espécie de áreas de serviço que eram, em regra, propriedade de comerciantes portugueses (os conhecidos metrôpoles) imbuídos do pior espírito colonial e que, talvez por isso, foram as primeiras vítimas da ira do povo moçambicano - e deparámos com uma dezena de homens, em tronco nu, de pele negra e bem suada e à volta de uma mesa que tinha uma bazuca - uma cerveja de litro e meio - no centro. Enquanto esperavam por uma qualquer refeição, o filho do comerciante, com uma idade igual à minha, atirava pão para os homens e repetia em tom jocoso: "hoje é dia de festa".
O meu pai esteve em silêncio e à saída disse-me qualquer coisa assim: "serão os primeiros a sofrer no dia da revolução". Lá me explicou o que é que queria dizer com o desabafo. Anos depois, a revolta "legitimou" a tragédia e as áreas de serviço arderam, e em muitos casos, com os comerciantes lá dentro. Foi também assim noutros capítulos dessa revolução. A cor da pele era o primeiro critério implosivo para humilhações acumuladas durante séculos.
As sociedades actuais não se devem considerar livres da ontogénese da humilhação. O bodo aos pobres deixa marcas. Os pobres não têm vergonha (a condição não o permite, sequer) e invadem os grandes espaços de gatas para afagarem a fome. É certo que o fazem, como também é de saber filogenético que um dia manifestarão em implosão social as sucessivas humilhações.