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Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

Correntes

da pedagogia e em busca do pensamento livre

pé na lua

26.07.11, Paulo Prudêncio

 

 


 

(Texto reescrito. 1ª edição neste blogue algures em Maio de 2004.

Foi também publicado na revista Risco, da Porto Editora,

no final do século passado.)

 

Esta história atravessa o tempo com três personagens do século passado e com o mesmo código genético. O destino reservou os mesmos obstáculos, em idades iguais, à avó, à sua filha e à neta. A avó nasceu em vinte e oito, a sua filha em cinquenta e nove e a neta em oitenta e seis. 

 

Influenciada pelas primeiras corridas de bicicletas para ciclistas masculinos, a avó teve um sonho avançado: vestir um par de calças e pedalar numa bicicleta de verdade. No Natal dos seus cinco anos, e apesar do mesmo pedido que o irmão - a desejada "duas rodas"-, o melhor que conseguiu foi um conjunto para o ponto cruz, numa época em que a indústria dessas coisas para as crianças era incipiente e os dedais não evitavam as picadelas das agulhas.

 

A sua filha vestiu, contra ventos e marés, a pele de uma ciclista de corpo inteiro. No entanto, vivia-se a era das primeiras emissões televisivas e os campeonatos de hóquei em patins preenchiam o imaginário das glórias lusitanas. A sua filha, então com cinco anos, pediu um equipamento da selecção nacional do dito jogo como prenda natalícia. Recebeu uns patins com uma bota muito branca, mas para um pé 36 (era hábito nesse tempo, como em muitos outros, dar às crianças algo que só usariam quando dominassem a razão) acompanhados de um vestido rosa, cheio de folhos, cópia dos usados pelas patinadoras que abrilhantavam os invisíveis cinco minutos dos intervalos dos jogos; foram parar ao sótão onde ficaram para a eternidade.

 

A neta patinou desde cedo e a escolha da cor da camisola estava tão democratizada como o uso das bicicletas. Mudava as fraldas das bonecas e brincava às cozinhas com os amigos, com quem se juntava para darem uns pontapés na bola. Os tempos eram outros. Há sempre um mas e também vos digo que ainda bem.

 

O tempo preenchia-se com as conversas intermináveis sobre os jogos de futebol. Como o código genético se manteve acordado, a neta começou a sonhar com umas futeboladas na escola, para um dia jogar num estádio verdadeiro e com um equipamento verdadeiro. Nos seus cinco anos, estava no último ano do jardim de infância, surgiu a primeira oportunidade para concretizar parte dos desejos. A educadora optou por um jogo de futebol entre as crianças e os pais para a festa de final de ano. Ideia brilhante. No dia grande, tal festa de natal já nossa conhecida, a educadora decidiu: os rapazes formaram a equipa e as raparigas foram a "claque". Não conto mais.

 

Encontrei-as, num mês de Maio de 1999, sentadas num sofá. Estavam com um sorriso indiscritível e viam, na televisão, a final do campeonato do mundo de futebol feminino. A neta não jogava, mas também quando o Neil Armstrong pôs o primeiro pé na lua não fomos todos que o fizemos?

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