gavetas
(Texto reescrito.
1ª edição em Janeiro de 2005)
Parte I
Inclino-me a escrever um texto canónico sobre a guerra. É tanta a náusea com esta coisa humana dos tiros aos outros, das mortes dos outros e das barbáries sobre os outros, que resolvi meter-me no assunto. O que vai ser canónico não é o que vou escrever, mas a organização em partes deste somatório de letras; com introdução, parte principal e conclusão.
E, novidade das novidades, a parte principal não terá fim. Quem ler este texto em momentos espaçados por tempo que deixe saudades, encontrará mais palavras. Ainda como introdução, digo-vos que vou citar um texto que li no dia 17 de Maio de 2004, de Fernando Ilharco, no jornal Público.
A lead era assim: A desilusão, a mais funda desilusão, para os homens e as mulheres de boa vontade, é seguramente que a guerra, os seus horrores e indizíveis caminhos, seja a forma que os tempos, hoje, tomaram para desbravar o futuro. E mais à frente lia-se: A subida do preço do petróleo é, possivelmente, o sinal mais claro de que os Estados Unidos perderam a guerra no Iraque. E continua assim: Lyndon Johnson, Presidente americano, comentou sinistramente os intensos bombardeamentos ao Vietname do Norte, dizendo "estamos a tentar comunicar...". E concluía: Afogados em histórias, écrans, papéis, vozes e símbolos que para nós próprios criámos . Hoje não vemos a floresta. Nem sequer vemos as árvores . Neste quadro, o tempo das pessoas tem vindo a ser roubado pela tabloidização do mundo . Num tempo que assumiu a novidade e a inovação como o derradeiro critério da sobrevivência, do progresso e da prosperidade, no frenesim do momento, o que vemos, as mais das vezes, não são sequer as árvores, mas apenas as suas folhas, as suas mais estranhas, surpreendentes e porventura, caídas folhas. Parafraseando Garrett, folhas caídas, quais cinzas em que ardi.
Parte II
Esta é a tal parte infinita. A técnica de escrita que vou usar não é inovadora. Conhecia-a no Ulisses de James Joyce que fez o mesmo com os títulos e com as honrarias. Se deveríamos buscar os caminhos da paz, a solução consideraria a coabitação entre os seguintes grupos e géneros humanos e os respectivos adereços:
homens, mulheres, crianças, jovens, adolescentes, idosos, heterossexuais, homossexuais, bissexuais, homofóbicos, hermafroditas, cristãos, católicos, ortodoxos, heterodoxos, calvinistas, luteranos, beatos, adventistas do 7º dia, jesuítas, testemunhas de jeová, judeus, islamitas, budistas, confucionistas, ocidentais, orientais, europeus, muçulmanos, africanos, americanos, norte-americanos, sul-americanos, europeus de leste, bósnios, croatas, kosovars, israelitas, palestianos, sírios, jordanos, likudistas, trabalhistas, iraquianos, iranianos, sauditas, indianos, paquistaneses, caxemirenses, mouros, tripeiros, lisboetas, portuenses, conimbricenses, farenses, setubalenses, caldenses, transmontanos, minhotos, algarvios, alentejanos, bascos, catalães, galegos, castelhanos, democratas, liberais, conservadores, republicanos, verdes, comunistas, bolsistas, bloquistas, socialistas, capitalistas, populares, social-democratas, neoconservadores, radicais, neonazis, fascistas, neofascistas, anti-neoconservadores, anti-radicais, anti-neonazis, anti-fascistas, anti-neofascistas, electricistas, mecânicos, jardineiros, médicos, advogados, professores, deputados, brasileiros, moçambicanos, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, timorenses, romenos, ucranianos, moldavos, alemães, franceses, suecos, noruegueses, suiços, dinamarqueses, filandeses, polacos, cipriotas, eslovenos, eslovacos, checos, lituanos, malteses, argentinos, mexicanos, cubanos, colombianos, peruanos, bolivianos, marroquinos, argelinos, tunisinos, ruandeses, maioritários, minoritários, grupos étnicos, raças, peles, cores, marcas, cabelos, roupas, casacos, calças, camisolas, calções, anéis, brincos, pulseiras, colares, sapatos, sandálias, sapatilhas...
Parte III
Tantas diferenças e uma constante: a finitude das vidas é a finitude das diferenças. O que é que levará os homens a acreditarem no logro das guerras, mesmo das diplomáticas ou até das que se estabelecem em nome do mercado? Ouço vozes que se levantam contra a privatização das empresas desses combates. Sim, soldados profissionais que pertencem a uma empresa de guerra; não pela pátria, mas pela cor do dinheiro. Tão abjectos os caminhos, embora o primeiro possa advogar a legítima defesa. Não há desculpas para a violência. Inclemência, desumanidade e crueldade são os verdadeiros perfumes de tanta bestialidade. Que nem os deuses lhes valham.